Os números de infectados e óbitos provocados pela pandemia de Covid-19 no Brasil são alarmantes. Até o último dia de setembro (30), o país registrava 4.810.935 casos acumulados e 143.952 óbitos de acordo com o Ministério da Saúde[1]. Com as necessárias medidas de distanciamento social implementadas mais intensamente a partir da segunda quinzena de março, inúmeras atividades econômicas foram afetadas com o objetivo de controlar e arrefecer a curva de contágio do coronavírus.
Os setores de comércio e serviços foram os que tiveram os maiores impactos negativos devido ao fechamento total ou parcial dos estabelecimentos e de serviços com elevado grau de contato social. Apenas atividades consideradas essenciais continuaram em funcionamento. Nesse cenário, o consumo das famílias, responsável por quase dois terços (65%) do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil[2] em 2019, foi fortemente impactado pela pandemia de Covid-19.
No dia 17 de maio de 2020, a Confederação Nacional da Indústria (CNI)[3] publicou uma pesquisa realizada pela FSB Pesquisa, “Os brasileiros e o consumo no pós-isolamento”, revelando que praticamente a metade dos trabalhadores (48%) tinha medo grande de perder emprego (gráfico 1). Em maio, 23% dos entrevistados já tinha perdido totalmente a sua renda e outros 17% tiveram redução em seus rendimentos mensais (gráfico 2). Desde o início da pandemia, a pesquisa mostrou que 40% dos brasileiros acima de 16 anos perderam poder de compra.
Essa pesquisa da CNI mostrou ainda que 3 em cada 4 brasileiros reduziram o consumo durante o período de isolamento social (gráfico 3) de pelo menos um dos 15 produtos testados[4], devido ao impacto na renda e o medo do desemprego. Para o período pós-pandemia, a maiorias dos entrevistados (percentuais entre 50 e 72%) afirmou que planeja manter o nível de consumo adotado durante o isolamento social, indicando que o comportamento dos consumidores no futuro seja de que estes não estarão dispostos a retomar o mesmo patamar de compras anterior à pandemia.
Gráfico 1 – Medo de perder o emprego*
Nota: (*) Empregados com ou sem carteira assinada. Fonte: FSB Pesquisa e CNI.
Gráfico 2 – Salário ou renda mensal proveniente do trabalho
Nota: (*) Resposta espontânea. Fonte: FSB Pesquisa e CNI.
No dia 16 de julho de 2020, a CNI publicou a segunda rodada da pesquisa “Os brasileiros e o consumo no pós-isolamento” [5]. O estudo mostrou um recuo do percentual das pessoas que disseram ter perdido em parte ou totalmente a sua renda[6] quando se compara as pesquisas de maio (40%) e julho (31%), conforme pode ser visto no gráfico 2. Esse percentual pode ter sido afetado pelos programas de sustentação à renda dos governos, em especial o Auxílio Emergencial[7]. Apesar da recuperação na renda, a maioria dos brasileiros (71%) continuava com as despesas retraídas (gráfico 3), além de manter o nível de consumo praticado durante o isolamento social[8] no pós-Covid.
Um dado positivo revelado pelo segundo levantamento da CNI está relacionado ao endividamento. Enquanto na primeira pesquisa 53% dos entrevistados se declararam endividados, na segunda pesquisa, esse percentual recuou para 45% da população, sendo um patamar elevado de acordo com a CNI. A segunda rodada da pesquisa mostrou ainda que, em julho, 30% dos entrevistados solicitaram e estão recebendo o auxílio emergencial do governo, sendo usado para compras (57%) e pagamento de dívidas (35%).
Gráfico 3 – Redução de gastos e a existência de dívidas
Fonte: FSB Pesquisa e CNI.
O consumidor passou a apresentar um novo comportamento diante da pandemia. O padrão de consumo ficou voltado para itens de abastecimento de emergência e suprimentos ligados a saúde. As mudanças de hábitos fizeram com que houvesse um crescente interesse por produtos para a manutenção geral da saúde e bem-estar; armazenamento de alimentos e produtos de saúde e cuidados pessoais; aumento das compras online e diminuição das visitas aos estabelecimentos; viagens de compras restritas e retorno às rotinas diárias com cautela renovada sobre a saúde[9].
Esse movimento foi captado pela pesquisa mensal de comércio (PMC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) ao mostrar que, até o mês de julho, dos oito ramos de varejo restrito pesquisados pelo Instituto, apenas três registraram crescimento ao longo de 2020 no Brasil[10], sendo os mais pujantes os ramos de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria e cosméticos (6,5%), seguido por hiper, supermercados, produtos alimentícios, bebidas e fumo (6,0%).
O que se depreende é que, além dos impactos da redução da renda e do aumento do desemprego no consumo das famílias[11], os desdobramentos da atual pandemia podem provocar uma mudança estrutural no comportamento do consumidor[12]. Essa mudança pode estar relacionada com a ausência de uma vacina e/ou a falta de um tratamento medicamentoso mais eficaz contra a Covid-19. Contudo não sabemos, se quando ocorrer a vacinação da população, haverá um retorno ao comportamento anterior de consumo.
Espera-se que, com o “novo normal”, as pessoas busquem o melhor planejamento de suas decisões de consumo sendo mais racionais, a partir de suas necessidades, diante das incertezas que surgem com a pandemia de Covid-19. Entretanto, cabe evidenciar que essa “maior racionalidade” pode distinguir entre famílias com diferentes rendimentos e indivíduos com grau de escolaridade distinto, além de ser mitigada pelas distorções provocadas pelo aumento dos preços de bens e serviços.
Com a pandemia de Covid-19, as pessoas passaram a consumir mais alimentos no domicílio e alguns fatores econômicos, internos e externos, têm provocado aumento nos preços dos alimentos, conforme foram apontados na seção de destaque do Boletim Econômico Capixaba de setembro de 2020[13].
O aumento dos preços de alguns produtos nos últimos meses tem ganhado a atenção dos principais meios de comunicação e do público em geral, principalmente entre as pessoas com menores rendimentos, visto que são as famílias com menor poder aquisitivo[14] que despendem uma maior parcela da renda com alimentação, fazendo com o que crescimento dos preços desses produtos impacte significativamente o poder de compra dessas famílias. Neste contexto, essa parcela da população não consegue destinar recursos para o consumo de outros bens e serviços, uma vez que o seu orçamento está voltado para gastos com alimentação e habitação[15].
Uma outra questão que é importante destacar sobre as compras dos brasileiros foi levantada em uma pesquisa publicada pela CNI sobre hábitos de consumo da população brasileira em janeiro desse ano. A pesquisa “Perfil do consumidor: consumo consciente” mostrou que 38% das pessoas estão preocupadas com os impactos da produção sobre o meio ambiente[16]. Quanto maior o grau de instrução, maior a disposição de checar a procedência de um produto que adquirem é ambientalmente correta, visto que, 57% dos brasileiros com até a 4ª série do ensino fundamental nunca verificam e esse percentual cai à medida que aumenta o grau de instrução, chegando a 29% entre as pessoas com educação superior.
A pesquisa sobre o consumo consciente mostrou ainda que a renda também influencia na compra de um produto ambientalmente correto[17]. Cerca de 3 em cada 10 brasileiros estariam dispostos a pagar mais caro por produtos cuja produção foi realizada com baixa emissão de poluentes e de resíduos. Além disso, a população está mais consciente da coleta coletiva[18]. O levantamento em 2013 revelava que 47% dos brasileiros separavam lixo para reciclagem em seu domicílio e, em 2019, esse percentual subiu para 55%.
Portanto, mesmo em um contexto de pandemia, uma possível mudança no padrão de consumo da população deverá ser norteada pelo melhor planejamento de suas decisões e de promoção do consumo consciente e mais sustentável. É nesse contexto, com ideias inovadoras, ancoradas na economia circular, que os setores privado e público deverão buscar atender as demandas e as exigências dos consumidores. As empresas já estão adotando práticas mais sustentáveis e econômicas[19] para ofertar produtos ambientalmente corretos e, com o aumento da renda atrelada à uma melhor educação ecológica e financeira da população, o maior acesso a estes produtos trará benefícios para a economia como um todo.
[1] Nesta data, 30 de setembro, o Brasil já possuía 86,9% do total dos casos acumulados em que as pessoas já se recuperaram da Covid-19.
[2] De acordo com as Contas Nacionais Trimestrais (CNT) divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[3] Veja mais em https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/tres-em-cada-quatro-consumidores-vao-manter-reducao-no-consumo-no-pos-pandemia/.
[4] Produtos de limpeza; produtos de higiene pessoal; alimentos no supermercado; roupas; calçados; cosméticos; utensílios para cozinha; remédios; bebidas alcoólicas; móveis; alimentos prontos; eletroeletrônicos; eletrodomésticos; bebidas alcoólicas; serviços de streaming.
[5] Veja mais em https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/seis-em-cada-10-brasileiros-acreditam-que-retomada-economica-vai-demorar-pelo-menos-um-ano/.
[6] Respostas (i) “já fiquei totalmente sem salário ou renda do trabalho” e (ii) “já tive uma redução do meu salário ou da renda do trabalho”.
[7] A nota conjuntural PNAD Covid-19 do Ideies, a partir dos dados divulgados pelo IBGE, mostrou que o auxílio recebido por domicílio respondeu, em média, por um incremento de renda domiciliar de R$ 901 no Brasil. Veja mais em https://portaldaindustria-es.com.br/publicacao/492-em-agosto-pnad-covid19-aponta-retorno-gradual-ao-trabalho-e-aumento-da-desocupacao-no-es.
[8] Na pesquisa de julho, 51% a 74% dos entrevistados responderam que planejam manter o nível de consumo adotado durante o isolamento social dos produtos testados na segunda rodada da pesquisa.
[9] Essas mudanças de hábitos foram captadas pela pesquisa da Nielsen publicada pelo SEBRAE. Esse estudo analisou o impacto da Covid-19 no consumo em diferentes países, tais como, Brasil, China, Itália, Estados Unidos, entre outros. Veja mais em https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/estudo-mostra-novo-comportamento-do-consumidor-diante-da-pandemia,9388ad41eab21710VgnVCM1000004c00210aRCRD#:~:text=Segundo%20especialistas%2C%20as%20necessidades%20de,etapas%20do%20avan%C3%A7o%20da%20doen%C3%A7a.
[10] Tecidos, vestuário e calçados (-37,6%), livros, jornais, revistas e papelaria (-28,3%) e equipamentos e materiais para escritório, informática e comunicação (-20,5%) foram os ramos de varejo restrito que mais recuaram entre janeiro e julho de 2020, na comparação com o mesmo período de 2019. Esses setores do comércio foram os mais afetados devido à menor massa salarial da economia, fechamento de shoppings e comércio de rua e paralisação das atividades escolares presenciais.
[11] As Contas Nacionais Trimestrais referente ao 2º trimestre de 2020 mostrou que as despesas de Consumo de Famílias retraíram 12,5% na comparação com 1º trimestre de 2020. Em relação ao mesmo trimestre de 2019, o consumo das famílias teve queda de 13,5%, a maior queda já registrada na série histórica desse indicador. Veja mais em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28721-pib-cai-9-7-no-2-trimestre-de-2020.
[12] Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/07/20/covid-19-deve-mudar-habitos-de-consumo.htm.
[13] Veja mais sobre o aumento dos preços dos alimentos na seção de destaque “A inflação brasileira no contexto da pandemia de Covid-19” em https://portaldaindustria-es.com.br/publicacao/493-bec-de-setembro-traz-em-destaque-analise-sobre-a-inflacao-brasileira-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19
[14] A POF 2017-2018 mostrou que as famílias com até dois salários mínimos destinam 22,0% à alimentação, ao passo que 7,6% das despesas das famílias com rendimentos superiores a 25 salários mínimos são voltadas à alimentação. Veja mais em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25598-pof-2017-2018-familias-com-ate-r-1-9-mil-destinam-61-2-de-seus-gastos-a-alimentacao-e-habitacao.
[15] Ainda de acordo com a POF 2017-2018, as famílias com até R$ 1,9 mil destinam 61,2% de seus gastos à alimentação e habitação, ao passo que às famílias com R$ 23,8 mil ou mais destinam 30,2%.
[16] Veja mais em https://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/rsb-52-consumo-consciente/.
[17] Os brasileiros também se mostraram dispostos a pagar mais caro por alimentos orgânicos (36%) e por produtos de origem animal que minimizam o sofrimento, preservando o bem-estar animal (37%).
[18] Veja mais em https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/infografia/o-brasileiro-e-um-consumidor-consciente/.
[19] Veja mais em https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/sustentabilidade/o-ciclo-da-economia-circular/.
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